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Publié le par Blogsarah


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Alexandra Prado Coelho
Público, 28/04/07


As mães agarravam-se aos filhos com as forças que tinham, tentavam proteger-se dos golpes dos bastões, imploravam aos polícias que as matassem juntamente com as crianças. Foram precisas muitas horas para separar as mães dos filhos. As mulheres partiram em comboios, primeiro para o campo de Drancy, depois para Auschwitz. As crianças ficaram sozinhas no campo de Beune-la-Rolande. As mais pequenas tinham dois anos, as mais velhas treze. Mais tarde também elas partiriam em vagões de gado para as câmaras de gás nos campos alemães.
Foi na madrugada de 16 de Julho de 1942 que começou. Os rumores de que estava em preparação uma rusga contra os judeus a viver em França corriam há semanas, mas ninguém sabia quando é que a operação começaria. Foi às primeiras horas dessa madrugada que os polícias franceses começaram a bater às portas das famílias judias de Paris. A ordem era para que os acompanhassem. Os autocarros esperavam-nas na rua.

A "menina" - é assim que Tatiana de Rosnay trata durante grande parte do livro, "Chamava-se Sara" (que acaba de ser lançado em Portugal pela D. Quixote), a sua personagem, Sara - assustou-se com as pancadas na porta, com a palidez no rosto da mãe, preocupou-se com o pai, no seu esconderijo, e com o irmão mais pequeno. Mas quando viu os dois polícias à porta, pensou: "Estamos salvos. Se são franceses e não alemães, não corremos perigo. Se são franceses, não nos farão mal".
Era uma ilusão. Na operação de 16 e 17 de Julho de 1942, que ficou conhecida como a rusga do Vélodrome d"Hiver (ou Vel d"Hiv), os nazis limitaram-se a dar as ordens. Os polícias franceses cumpriram-nas. E, nas ruas, perante o desfile das famílias aterrorizadas, muitos franceses preferiram olhar para outro lado. Durante muito tempo, muito depois de terminada a guerra, a história do Vel d"Hiv não existiu em França.

Uma injecção para morrer

Tatiana de Rosnay, filha de pai francês e mãe inglesa, nascida em Paris, ouviu falar na rusga pela primeira vez em 1995, quando o Presidente Jacques Chirac fez um discurso histórico sobre o assunto, quebrando o que até aí fora um imenso silêncio. "Antes nunca tinha ouvido falar nisso, não era nada que se falasse na escola, não fazia parte do currículo, como hoje faz", conta Tatiana ao Ípsilon. Mas, mesmo depois de ouvir Chirac, Vel d"Hiv continuou a ser para ela "apenas um data".

Até que em 2000 começou a investigar, e decidiu escrever "Chamava-se Sara", a história de uma menina de dez anos que, ao ser levada com os pais, deixa o irmão de quatro anos em casa, fechado num armário, pensando que voltará horas depois para o libertar. Porque acredita: "Se são franceses, não nos farão mal". E durante todo o tempo, guarda, com a angústia sempre a crescer, a chave do armário onde o irmão a espera, agarrado a uma lanterna e ao urso de peluche favorito.

O Vélodrome d"Hiver era um pavilhão desportivo em Paris, usado até então para provas de ciclismo. Foi para aí que se dirigiram as camionetas que durante os dias 16 e 17 atravessavam Paris cheias de judeus. "Os alemães tinham pedido [que fossem detidas] as pessoas entre os 18 e os 50 anos", explica Tatiana. "A polícia francesa decidiu dar-lhes mais: os velhos e as crianças".

No livro editado pela Câmara Municipal de Paris em 2002, para assinalar o 60º aniversário da rusga, Adam Rayski, um dos responsáveis pela resistência judia na época, conta a operação a que as autoridades francesas chamaram "Vento Primaveril": "A polícia, tendo recebido ordem para não ter em conta o estado de saúde das pessoas inscritas nas listas, levou não apenas os doentes graves, mas também os mortos. Uma criança que tinha morrido na véspera foi levada num lençol. Levaram mulheres e crianças a partir dos dois anos, mulheres grávidas no sétimo, oitavo ou nono mês, doentes tirados das suas camas e levados em cadeiras ou macas [...] É a partir dos dois anos que as crianças são consideradas "aptas" para os campos de concentração".

As famílias que não tinham menores de 16 anos foram directamente para o campo de Drancy. Os outros seguiram para o Vélodrome d"Hiver. Uma das poucas fotografias conhecidas mostra uma série de camionetas estacionadas ao lado do edifício. Do interior sobreviveu apenas uma imagem. Mas há relatos. Por exemplo o das irmãs Cathala, que pertenciam ao Movimento Nacional contra o Racismo e conseguiram entrar no pavilhão com falsos certificados de assistentes sociais. Descrevem - e Tatiana descreve no livro - um ambiente de inferno, onde doze mil pessoas tentavam acomodar-se no pouco espaço livre nas bancadas ou não chão, um cheiro nauseabundo a partir do momento em que as casas de banho entupiram, nenhuma distribuição de comida nos dois primeiros dias, cenas de histeria, gritos constantes, o choro ininterrupto das crianças, tentativas de suicídio. Uma assistente social conta como as mulheres se precipitavam para ela e lhe imploravam: "Uma injecção para morrer, por favor".

"Um verdadeiro matadouro", contou uma rapariga de 16 anos que foi libertada por ter a nacionalidade francesa [em princípio só eram detidos os judeus "estrangeiros"]. "Os doentes cospem sangue, as pessoas desmaiam sem parar. Os gritos das crianças são ensurdecedores. Enlouquece-se".

Feridas abertas

Durou cinco dias o inferno em Vel d"Hiv, antes da transferência para os campos de Pithiviers e Beune-la-Rolande. Lá fora a vida continuava. "Ainda hoje", diz Tatiana, "muitos franceses não sabem que as crianças foram separadas das mães [já em Pithiviers e Beune-la-Rolande] e que ficaram sozinhas num campo durante duas semanas, antes de serem mandadas, sozinhas, para a morte".

Começou a investigar a história, e descobriu, por exemplo, que uma vizinha sua, de 80 anos, era uma das sobreviventes de Vel d"Hiv (houve poucos sobreviventes, apenas algumas crianças libertadas por terem nacionalidade francesa ou outras que os pais conseguiram fazer sair do pavilhão às escondidas). "Foi muito importante para mim encontrar estas pessoas, falar com elas e perceber que mesmo quando se tem 80 anos é como se tudo tivesse acontecido ontem".

Mas hoje, em França, a história do colaboracionismo com os nazis começa a ser falada cada vez mais abertamente. O livro "Suite Francesa", da judia Irène Némirovsky - também ela morta nos campos, mas cujo manuscrito ficou durante décadas nas mãos da filha e acabou por ser publicado postumamente há dois anos -, "mudou muita coisa", diz Tatiana.

E o que está em causa não é apenas a história de como a polícia francesa cumpriu, com excesso de zelo, as ordens dos nazis. É também a forma como muitos franceses preferiram não ver o que estava a acontecer, e que começou antes de Vel d"Hiv. Começou, por exemplo, quando vieram, em Junho de 1942, as primeiras ordens do Governo de Vichy para que os judeus usassem a estrela amarela, ou, "a insígnia". Essa estrela que os impedia de se tornarem invisíveis, por muito que tentassem, que fazia com que as outras crianças da escola começassem a desprezá-las de um dia para o outro, essa estrela que, mesmo que se tentasse arrancar da roupa, deixava uma marca, que tornava impossível fugirem ou esconderem-se. "Em caso de rusga não me conheces, atravessas a rua para o outro lado", diziam as mães aos filhos, na esperança de os salvarem.

O escritor Vercors (Jean Bruller) descreve num romance publicado clandestinamente em 1943, como muitos franceses se sentiam ao ver a estrela. "Era uma dessas (uma estrela amarela) que, numa manhã clara de Junho, avançava na minha direcção. Como sempre corei (numa consegui cruzar-me com uma, nem uma única vez, sem corar). E já virava a cabeça, com esta cobardia miserável que me impede sempre de lançar num olhar a mensagem de fraternidade que, só ela, poderia atenuar a minha humilhação...".

Mas "houve também pessoas boas", que correram riscos enormes para salvar judeus - e Tatiana de Rosnay quis prestar-lhes homenagem, incluindo-as como personagens no seu livro. Algumas mães conseguiram, pouco antes de entrarem para os autocarros no dia da rusga, entregar as crianças a vizinhas, pedindo-lhe que tomassem conta delas. E elas fizeram-na, apesar do perigo que isso representava.

"Este não é um livro histórico, não é o trabalho de uma historiadora, é um livro sobre as cicatrizes que ficaram até hoje", sublinha a autora. A personagem principal, Julia Jarmond, é uma americana, casada com um francês, mas "que não encontrou exactamente o seu lugar em França" e que vai investigar a história de Vel d"Hiv - e não, não é a própria Tatiana. "Escrevi-a a pensar na [actriz] Jodie Foster", confessa (os direitos da história já foram vendidos em França, e sabe-se que o filme será realizado por Gilles Paquet-Brenner, e que este gostaria de ter uma americana no papel de Julia).

Com o sucesso do livro, vendido já para 17 países, Tatiana espera que a França e o mundo nunca mais volte a esquecer as crianças de Vel d"Hiv. Só lamenta que, durante a sua investigação, não tenha conseguido falar com algum dos polícias que tivessem participado na rusga - um sinal de que há feridas que não fecharão nunca.

O mais próximo que chegou de um desses homens foi, já depois do lançamento do livro, num programa de rádio em que participou. "Uma das pessoas que telefonou era uma filha de um polícia. Ela sabia que o pai tinha sofrido imenso pelo que tivera que fazer, mas ele nunca falara no assunto. Mas lembrava-se que um dia, nesse mês de Julho de 1942, ele voltara para casa com um pequeno brinquedo já usado e que lho dera. Tinha sido a forma dele de lhe dizer". Mesmo que só muitos anos mais ela percebesse de que ele que ele (não) estava a falar. 

"Chamava-se Sara" no cinema

Chamava-se Sara, livro editado pelas Publicações Dom Quixote, vai  ser adaptado ao cinema. O filme será produzido por Stéphane Marsil e pelo realizador francês Gilles Paquet-Brenner que tem no currículo um considerável  historial de adaptações cinematográficas. 

“Elle s’appelait Sarah” será o nome do filme em francês, ainda sem data prevista de estreia. Esta adaptação confirma o sucesso do livro que é, já, best-seller em França, um dos 18 países onde se encontra à venda. A esta lista junta-se agora os EUA onde será publicado, ainda este mês, com o título “Sarah’s Key”.

Este é o nono romance de Tatiana de Rosnay, uma jornalista e guionista francesa que, neste livro, relata a investigação de uma das mais negras páginas da história francesa: a rusga que deportou mais de oito mil judeus para os campos de concentração.

 

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Julia Jarmond, uma jornalista americana casada com um arquitecto francês, investiga uma página negra da históriafrancesa recente: a rusga através da qual a Polícia Francesa, na madrugada do dia 16 de Julho de 1942, levou mais de 8 000 judeus franceses para o recinto desportivo do Vélodrome d’Hiver, para que aí ficassem até serem deportados para os campos de concentração.Descobrindo, horrorizada, o calvário de todas aquelas pessoas que, durante dias, sem água nem alimentos, ficaram a aguardar a deportação, Julia interessa-se, em particular, pelo destino de Sara, uma menina entre as mais de 4 000 crianças que ali estiveram. Sara, acreditando que estava a proteger Michael, o seu irmão mais novo, fechara-o à chave num armário, prometendo- lhe que iria buscá-lo depois. E depois não conseguiu. Em Paris, em 2002, Julia, enquanto percorre o passado de Sara, a rusga, a deportação, acaba por ter de reavaliar o seu próprio lugar naquele país, naquele casamento e naquela vida. 



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